quarta-feira, 23 de setembro de 2020

O sonho negado dos filhos de tantas Marias. Relato de um futuro professor

 


    Um jovem, filho desta terra, escreveu este texto, mas pediu para manter o anonimato, pois teme represálias futuras, como não conseguir lecionar na cidade, já que ser professor em Bacabal, para muitos e muitas, depende de favor político e não da formação e capacidade. Basta de censura, pela emancipação do nosso professorado e população. 

    Sou filho de um vigilante e de uma doméstica, que mesmo trabalhando na informalidade deu conta de criar os filhos e prover o sustento do lar. Ao iniciar a vida escolar sempre sonhei em estudar música e torna-se um profissional. Inspirei-me ao ver tantos chorinhos tocados por excelentes músicos na terra da bacaba que eu não provei do suco. Uma pena eles  não terem amparo de políticas públicas de cultura, incentivando-os, valorizando-os, garantindo assim renda e trabalho. Consequentemente, meu sonho, e o sonho de tantos outros de caminhar pela música não logrou êxito. Ademais, há um preconceito estereotipado quanto aos músicos, como exemplificado nas palavras de Lima Barreto, “Policarpo Quaresma aprendeu a difamada arte de tocar violão” (isso em fins do século XIX). Assim, já no Ensino Médio, por influência de um ótimo professor, despertou-se em mim o interesse de atuar na educação, sendo professor. Nesse contexto, eu já tinha experiência de vender pelas ruas da cidade desde a laranja ao tomate de sol a sol e de domingo a domingo. De malas pronta para estudar Licenciatura em História na capital (São Luís), a realidade se impôs, a condição financeira dos meus pais não era suficiente para me manter. Outra barreira ao meu segundo sonho! Mas desistir, isso nunca! Mesmo estudando com toda dificuldade, ao mesmo tempo, minha mãe às vezes em crises (devido uma doença crônica), eu sempre olhava para frente e não baixava a cabeça.

    Assim, iniciei o curso de história em uma instituição privada, pagando com toda dificuldade, trabalhando em uma loja de ferragens. No dito trabalho pude presenciar contrastes, realidades diferentes. Enquanto trabalhava na informalidade, ganhando pouco, tinha que escutar o patrão afirmar que trabalhar e estudar sempre deu certo, a exemplo de seus três filhos, que estudavam medicina em Teresina. Mal sabia ele da minha realidade. Ele, o típico "homem cordial", dono de diversos imóveis, fazendas e gado, sempre ajudando os necessitados que surgiam na porta da loja, mas sempre perpassando da esfera do privado para o público. No ano de 2018 conquistei um vaga na Universidade Federal do Maranhão (UFMA) para o curso de sociologia, uma vitória! Aos poucos comecei a entender a realidade, seja por meio das leituras diárias, em aulas com os grandes professores que tive a honra de ser aluno, ou nas trocas de ideias dentro dos muros da universidade. 

    Mas devo afirmar que a realidade, às vezes, é amarga e cruel. Em nossa cidade, políticos mandam e desmandam, o descaso é nítido tanto na educação quanto no fomento à cultura. Devo me opor ao sistema, mas receio ter negado meu acesso à prestação de serviço público, o que tenho direto por meio dos princípios da Constituição que nos rege. Essa censura é comum e junto ao meu relato posso acrescentar depoimentos como o de Maria Ducarmo ou Maria de Fátima. Escutei o relato da primeira na cadeira da universidade, enquanto ela dava seu testemunho de vida. Ao final, as lágrimas não deixaram de sair dos meus olhos. Moradora de uma determinado povoado de Bacabal, foi várias vezes despejada de sua casa, assim como os demais moradores, pelos proprietários de terra, ao fim do dia na quebra do coco babaçu, direcionava-se ao mercadinho para trocar as amêndoas por alimentos, onde o comerciante botava em um único saco de estopa arroz, farinha, feijão... quanto descaso e humilhação. Já no segundo caso, Maria de Fátima, a conheci pessoalmente durante uma pesquisa de campo em município de Bacabal. Seus relatos estão vivos em minha memória. Seu sonho é uma unidade básica de saúde no povoado e uma escola. Sonha em possuir uma casa de alvenaria na cidade para que seu filho possa trabalhar em uma das diversas lojas de confecção. Que relatos! Acessos que o ser humano tem por direito, ainda é sonho em diversas realidades. Sempre costumo dizer que a classe que Darcy Ribeiro caracterizou como ranzinza, amarga e azeda continua sendo a mesma, perpetuando-se no poder por décadas, sempre narrando os fazeres de um povo sofrido a partir da varanda da Casa Grande. Por fim, hoje continuo trabalhando na informalidade, mas estudando todos os dias. Pela graça de Deus no final desde ano finalizarei meu curso. Sempre acreditando que a educação pode mudar as pessoas! 

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