domingo, 3 de maio de 2020

Seja de esquerda ou de direita, só não seja ignorante

Esquerdalha, direitalha, coxinha, mortadela, esquerdopatas .... Infelizmente, essas expressões pejorativas se tornaram comuns em nosso vocabulário político. Mas, será que as pessoas estão pensando o quão ofensivo é isso? Será que elas têm uma definição sólida para fundamentar se são de direita ou de esquerda? Para tudo na vida, antes de formarmos nossas opiniões, é necessário pesquisarmos, termos melhor embasamento.
Afinal, qual a origem e o sentido dessa divisão ideológica entre esquerda e direita? Ela ainda faz sentido, ou está morta, como muitos afirmaram nos anos 1990? Para pensar essa questão polêmica, vamos recorrer a um pensador italiano, Norberto Bobbio, muito conhecido na área do direito, que apresenta uma reflexão objetiva e racional.
A divisão ideológica esquerda/direita nasceu, justamente, com o próprio pensamento democrático moderno, no século 18. Sua origem mais remota é a França, na época em que ocorreu uma revolução (1789) para garantir um governo livre, igualitário, baseado na lei, e não na vontade suprema do rei.
Após muita fome e reivindicações não atendidas, o povo tomou as ruas e as instituições, fundando um governo revolucionário. Contudo, com a sociedade dividida em classes, não poderia haver consenso. Em uma das assembleias realizadas, houve uma divergência muito grande nas posições defendidas. Nobres e outras pessoas privilegiadas, preocupadas com a continuação do processo revolucionário, sentaram-se à direita, defendendo a manutenção de muitas leis. Principalmente, aquelas que garantiam seus privilégios, como não pagar impostos. Já os representantes do povo e da burguesia, querendo mudanças radicais, que garantissem maior igualdade e liberdade, sentaram-se à esquerda. Houve quem, sentado no centro, ora se alinhava com um grupo, ora com outro. Dessa divisão espacial básica nasceu a divisão ideológica esquerda/direita, a qual podemos associar outra: progressista ou conservador. Quem, à direita, quis conservar as instituições e os privilégios do Antigo Regime, passou a ser chamado também de “conservador”. Quem, à esquerda, quis mudar a sociedade e suas instituições, fazê-las avançar, passou a se autointitular “progressista”.
            De lá para cá, essas divisões mobilizaram muitas paixões, mas também muitas reflexões. Bobbio, jurista e intelectual muito renomado, dedicou um livro inteiro ao tema, chamado “Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção política”. Segundo ele, essas definições mudam de sentido no tempo, sendo posições ocupadas por um grupo ou outro. Mas, em seu núcleo duro está a invariável questão da igualdade ou desigualdade. A busca por igualdade e valorização da coletividade caracteriza as esquerdas, enquanto as direitas sustentam a naturalização da desigualdade e valorização do individualismo. Uma visão destaca que a busca pelo bem comum passa pela redução ou extinção das desigualdades sociais, que provocam injustiças. A outra enfatiza que os indivíduos, ao buscarem seus interesses próprios, indiretamente, auxiliam a coletividade, sendo as desigualdades naturais e necessárias. Haveria uma permanente competição dos indivíduos entre si, com alguns se destacando em relação a outros (pouco se fala das condições desiguais nessa disputa).
            Outra divisão fundamental feita por Bobbio é entre moderados e radicais. Enquanto os primeiros se caracterizam por posições que buscam valorizar as instituições e as garantias que oferecem às pessoas, trabalhando para aprimorá-las ao longo do tempo, os segundos, mais influenciados pelas ideias em si do que pela observação das coisas, buscam romper com a realidade presente. Nesse sentido, Bobbio recorre à máxima de que os “opostos se atraem”, com os extremos dando a volta e se tocando.
Assim que, posições radicais, como o fascismo à direita e o comunismo clássico à esquerda, apresentam pontos em comum. Um exemplo são as falas de Bolsonaro, “direitista declarado”, atacando as instituições da República e querendo fechar o Congresso e o STF, o que lembra a concentração de poderes no executivo que havia na Alemanha Nazista de um lado (direita) e na União Soviética de outro (esquerda).
De todo modo, não podemos generalizar e simplificar. Esquerdas e direitas precisam ser mencionadas sempre no plural, e nem tudo que está em um polo é comunismo ou fascismo. Precisamos diferenciar e usar essas palavras com precisão, para não as banalizar. Até porque, lamentavelmente, enquanto o comunismo entrou em crise na década de 1990, o fascismo ressurgiu desde então e vem ganhando força, inclusive, no Brasil. Precisamos ter em vista que as duas grandes tradições de pensamento político, liberalismo e socialismo, enfatizando a liberdade ou a igualdade, têm outras derivações, ocupando posições mais complexas do que suas manifestações extremas.
Inclusive, tanto o liberalismo quanto o socialismo são fundamentais na concepção e garantia dos direitos humanos, no século XX, que são os direitos mínimos, necessários para se garantir a dignidade humana, o que está na base de nossa Constituição Federal de 1988. Os direitos civis e políticos (como proteção em relação ao Estado e as liberdades básicas) derivam do liberalismo. Direitos econômicos, sociais e culturais derivam do socialismo, como a existência de salário mínimo, férias, direito à saúde, educação, moradia e à cultura. A dignidade humana é um excelente meio termo e ela depende, inclusive, da existência de um meio-ambiente saudável para todas e todos, que é um direito e expressão de solidariedade intergeracional. Para garantir esse direitos fundamentais, é imprescindível colocarmos limites à mercantilização de tudo e todos, separando o que pode ou não se tornar mercadoria e o que é imprescindível para uma vida digna, portanto, é direito.    
            Em resumo, essas divisões ideológicas não são estáticas, muito menos motivo de depreciação ou demonização das diferenças. Inclusive, independentemente, devemos combater manifestações de intolerância e as posições políticas que violam a dignidade humana, colocando em risco os direitos básicos, sendo o caso do neofascismo. Não podemos simplificar o debate político, naturalizando expressões como “esquerdopata”, como se todo mundo que defendesse posições à esquerda sofresse de uma doença ou “patia” e a única posição legítima fosse à direita. Assim como a realidade é mais complexa que nossas teorias, nosso pensamento político deve ir além dessas categorias, estando permanentemente aberto a reconsiderações e ao convencimento de opiniões contrárias. É do confronto saudável e respeitoso das diferenças, a partir dos debates políticos, que amadurecemos opiniões, que testamos nossas hipóteses. Em democracias, o outro (oposição) não é um inimigo a ser combatido, exterminado, mas um sujeito necessário para aprofundar os juízos sobre a coisa pública.
Pensando em nossa realidade política, Bacabal, ainda precisamos nos concentrar na superação do sistema político arcaico, formado lá no tempo da colônia, que coloca a coisa pública como meio de enriquecimento de alguns. Estes (corruptos) gerem nossas instituições como se fossem sua propriedade privada (patrimonialismo), empregando parentes, amigos e apoiadores e, assim, garantindo apoio político (clientelismo), bem como licitações superfaturadas, direcionadas para os investidores de suas campanhas (corruptores). Não planejam o desenvolvimento, o progresso da cidade e sociedade, adotando medidas aleatórias, populistas e personalistas, como ir pessoalmente entregar alimentos para desabrigados, tirando e publicando mil fotos para se autopromover. Seu dever como gestor ou aspirante a tal não é esse, mas elaborar e implementar medidas fundadas em planejamento estratégico, abrangendo prevenção de calamidades, o desenvolvimento, geração de emprego e renda e garantia habitacional, remanejando a população ribeirinha, que habita irregularmente zonas de risco, dando um uso social às propriedades vacantes. Legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência são os princípios constitucionais das gestões, o LIMPE, e não seu oposto, que é o que há um século caracteriza os governos municipais.
Enfim, é importante pesquisarmos, constantemente, e irmos nos definindo politicamente, de forma respeitosa e combatendo quem viola a dignidade humana. Mas, ainda mais importante e urgente em Bacabal é rompermos com essa política do atraso, é garantirmos uma abolição definitiva da servidão, fazendo vigorar a dignidade humana como princípio e realidade na cidade. Para isso, precisamos ir além, ao menos nesse momento, dessa divisão ideológica, pois LIMPE são princípios urgentes para fundamentar a gestão municipal, seja ela de esquerda ou direita. 

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